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A fantasia de ser um corpo

  • Foto do escritor: Raphael Cela
    Raphael Cela
  • 23 de jul. de 2020
  • 2 min de leitura

Uma fantasia comum à neurose é a ideia de ser um corpo. Chamo essa fantasia de esperança de ser um corpo e, assim, escapar da desgraça que é ser um sujeito de linguagem, um falaser, escapar da predação que a linguagem opera sobre nós. O retorno ao selvagem, a verdade que se afigura no suposto instinto, é o retorno a condição suposta por nós de bicho antes da linguagem. É uma esperança, é um grito de socorro, é uma tentativa, comovente que seja, de escapar ao vazio que existe de maneira tão forte em nós. É o desespero de poder acessar o corpo de forma imediata, por isso os entusiastas dessa esperança situam no corpo enquanto fisiologia a verdade. Mas o corpo enquanto anatomia, pura biologia, está para sempre perdido para nós que falamos. Nosso acesso ao mundo ocorre de forma mediata, e, portanto, nosso acesso a nós mesmos também, só acessamos o corpo através da linguagem. Assim podemos fazer fantasias, a fantasia do homem selvagem, obediente a seus instintos mais animalescos, senhor de seus desejos mais contrários as normas sociais, por ser anatomia, puro corpo natural.


Interessante que só pode haver fantasia se há linguagem, mas nos esforçamos. Quando se remete ao sexo por exemplo, existem toda uma encenação de domínio, poder, utilização dos corpos, vê-se isso bem em Sade, e em menor grau nas fantasiazinhas de qualquer neurótico, é algo banal. Eles dizem, com suas performances, existir uma verdade que finalmente alcançam, uma verdade que é finalmente uma liberdade, uma libertação em relação a todas essas pequenas coisas ridículas e infelizes que marcam as desventuras do ser humano no campo da linguagem. É próximo do que Freud descreveu como o sentimento oceânico, esse sujeito que pretende a verdade do ser instintual, de seu ser desinibido do que possui em si de selvageria, ele pode finalmente se dissolver na natureza e se acreditar livre. Se é a dor o que garante seu estatuto de liberto, dizemos: masoquista; se é o causar dor o que chama de sua liberdade, dizemos: sádico. Será que não advinham em que ponto circulam eles também, como cada um de nós, como insetozinhos ao redor dessa lâmpada velha e inapagável que é o desejo que só a linguagem dá? Este selvagem é muito refinado, chamaria ele assim: de um selvagem refinado. Diria que ele tem a fantasia de ser um corpo.


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