Freud, Nietzsche e Schopenhauer: uma análise relacional
- Raphael Cela

- 27 de jun. de 2020
- 8 min de leitura
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Resumo: O presente trabalho pretende relacionar alguns conceitos da teoria psicanalítica freudiana com dois dos filósofos alemães mais influentes, a saber, Nietzsche e Schopenhauer. Encontrar pontos de semelhança entre Freud e esses dois pensadores, para conhecer melhor algumas possíveis influências sobre a criação da psicanálise, constitui o escopo do presente artigo.
Palavras-Chave: Psicanálise. Freud. Filosofia alemã. Nietzsche. Schopenhauer.
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Algumas influências para a construção do conhecimento são facilmente identificáveis e recorrentemente citadas, como por exemplo, a influência da teoria da evolução, que transcendeu os limites da biologia ao invadir o campo de reflexão e discussão de outras ciências, Freud foi muito influenciado por ela.
Outras influências não são tão recorrentes assim, o que de maneira alguma retira a sua importância. Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX abordou alguns assuntos comuns com a psicanálise. O medo, a culpa, o processo civilizatório como algo que aterra os impulsos primitivos do sujeito, são apenas alguns deles. Contudo, o que se pretende aqui é estabelecer paralelos, apontar semelhanças, e não afirmar que ambos dizem exatamente a mesma coisa. Visto que, por exemplo, o que Nietzsche aponta como “decadência” seria para Freud, algo inerente à condição humana: a repressão instintual como exigência da cultura, da vida.
Em Schopenhauer encontram-se o que alguns críticos se arriscam a chamar de textos pré-psicanalíticos. As semelhanças entre ele e Freud às vezes impressiona, sobretudo, quando o tema em questão é a força do sexo, o poder do desejo, ou o ser humano visto como animal dominado pela vontade. Esse texto trata, portanto, de uma análise relacional entre Freud e Nietzsche; e entre Freud e Schopenhauer.
Freud e Nietzsche: civilização e patologia
Quando Freud disse que o preço pago pela cultura era a neurose, talvez, já tivesse lido a seguinte epígrafe de Nietzsche, considerado um dos filósofos mais influentes do século XX: “Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente(...)” (1987, p. 135) . O aspecto doentio da natureza humana, impelido pelo processo civilizatório é sem duvida algo que se encontra nos dois pensadores. Onde a cultura vem reprimir os instintos básicos, para ser mais psicanalítico, as pulsões mais primitivas.
No seu texto Totem e Tabu (1913), Freud argumenta sobre como teriam se formado as instituições sociais e os padrões culturais que permeiam aquilo que, de maneira geral, denomina-se civilização. De modo que, para entendermos o nosso comportamento, precisamos analisar como ele se constituiu até se tornar o que é. Entender a mensagem transmitida por Freud na referida obra é passo inevitável e necessário para que possamos prosseguir nossa análise, sendo que a seguir desenrola-se um breve comentário das ideias de Freud.
Freud acreditava que existiam sociedades selvagens ou semi-selvagens que permitiriam uma análise sobre o desenvolvimento da sociedade civilizada:
“Esse é o nosso ponto de vista a respeito daqueles que descrevemos como selvagens ou semi-selvagens; e sua vida mental deve apresentar um interesse peculiar para nós, se estamos certos quando vemos nela um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento.” (Freud, 1913, p.21)
Darwin introduzira a hipótese de que o ser humano primitivo vivia numa horda, ou seja, havia uma prevalência do macho, que, portanto, dominava, assim como ocorre com alguns outros animais. De maneira resumida Freud acreditava que o pai, elemento dominante nessas sociedades, expulsava os jovens machos e assim garantia o controle das fêmeas. Os jovens machos se revoltariam contra o pai e então o matariam para conseguir as mulheres, este assassinato primitivo teria dado inicio a civilização.
Depois de matarem o pai, ficariam com uma grande sensação de culpa. É aí que entra o totem, a sensação de culpa precisa ser eliminada de alguma forma. Totem nas palavras de Freud: “(...) via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo clã.” (1913, p.22). A relação peculiar que Freud se refere envolve principalmente a proibição e o estabelecimento de leis que regulamentam o instinto, é o começo da cultura, é a pré-história do Direito.
O parricídio foi um elemento importante nesse processo, mas não o único. O que impressionou Freud foi o fato de ter encontrado, ao analisar o modo de organização destas sociedades, uma estrutura montada para evitar o incesto: “Na verdade, toda a sua organização social parece servir a esse intuito ou estar relacionada com a sua consecução.” (1913, p.22). Freud sempre argumentou que o recalque era uma exigência da civilização. Bicho social, animal recalcado, ser humano doente, nas palavras de Nietzsche: humano demasiado humano.
Como foge ao escopo do presente trabalho, limitarei a análise de Totem e Tabu, que ilustra como surgiu, como se organizou a sociedade civilizada. O importante é perceber que: a estratégia utilizada pelo sujeito para lidar com seus impulsos mais básicos e primitivos foi uma estratégia que levou o ser humano a não poder fugir do que na psicanálise se chama de: estrutura neurótica, estrutura psicótica e estrutura perversa. É justamente aí que se encontram os discursos de Nietzsche e Freud: quando este afirma que o homem é o animal mais profundamente doente encontra-se com aquele quando abandona a noção de normalidade. Nas palavras de Nietzsche: “(...) é normal a condição doentia do homem – e não há como contestar essa normalidade” (1987, p. 136).
A culpa aparece como fator relevante nos dois pensadores, e o medo que advêm dela também. Nesse sentido, Nietzsche parece apontar para uma postura de coragem do que temos em nós de humano, é o que enuncia em sua obra Ecce Homo: “(...) uma forma de afirmação suprema nascida da abundancia, da superabundância, um dizer sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo o que é estranho questionável na existência mesmo...” (2008, p. 60). O filosofo alemão vê, assim como Freud, as instituições sociais, sobretudo as religiões como representantes de forças contrarias àqueles impulsos humanos mais básicos, é enfim, a civilização.
Freud e Schopenhauer: O animal do desejo
O peso da sexualidade na teoria Freudiana é incontestável, por mais que o termo tenha um caráter de abrangência, isso não descaracteriza a conexão amorosa do tema, no que tange ao desejo e a satisfação. Em Schopenhauer encontra-se uma visão semelhante, apesar da utilização de uma linguagem diferente, uma abordagem filosófica do assunto.
Schopenhauer não só falou sobre o peso do amor e do sexo na vida humana, como também da força e onipresença do desejo subjacente aos mesmos, é o que escreve em seu livro A Vontade de Amar (2010):
Por mais ideal que queira parecer, toda inclinação amorosa não nasce do instinto natural dos sexos, e não é mesmo outra coisa senão esse instinto especializado, determinado, individualizado. Posto isto, considerando o importante papel que o amor desempenha, as suas gradações e nuanças no mundo real, e não somente nas novelas, onde é, com o apego à vida, a força mais ativa e poderosa; se pudessem ponderar que o amor consome todas as energias da juventude e todos os esforços humanos e têm como derradeira finalidade que faz sentir uma influência perturbadora nos negócios mais importantes; que a cada momento interrompe as mais graves ocupações; que transtorna os mais sólidos entendimentos; que não se abstém de enredar suas frivolidades nas negociações diplomáticas e nos trabalhos dos sábios, chegando a deslizar suas doces missivas pelas pastas dos ministros e entre os manuscritos dos filósofos, o que não o impede de ser diariamente o inspirador das piores empresas e dos planos mais complicados; observando que enfraquece as relações mais preciosas e os laços mais fortes, e fez vítimas a saúde, a vida, a riqueza, a situação e a felicidade; vendo que porém perde a honra o justo, e se torna traidor o fiel, e que parece ser qual gênio maléfico, que todo seu empenho põe em transtornar, intrigar e destruir tudo (...) (Schopenhauer, 2010, p. 11)
Schopenhauer via, portanto, o ser humano como animal guiado por essa vontade, esse desejo sexual, que muito o impacta e atormenta. Acontece que aqui o sexo é tido como reprodução, o desejo sexual aponta para a produção de uma nova vida. O homem é, então, guiado pelos interesses do gênio da natureza, nas palavras do próprio Schopenhauer, mas acha que busca a satisfação dos seus desejos: “O instinto do amor é meramente subjetivo, mas sabe iludi-los, ocultando-se sob a máscara de uma admiração objetiva. Para conseguir seus fins a natureza emprega a sua astúcia.” (Schopenhauer, 2010 p. 13).
A sexualidade está entre os conceitos que Freud defendeu com mais afinco ao longo da construção da psicanálise, tendo provocado por essa razão, inúmeras dissidências no movimento psicanalítico. Freud vai além de Schopenhauer na sua análise sobre a sexualidade, justamente por não ter mantido uma hipótese de embasamento puramente orgânico. Freud não via a sexualidade como um instinto biológico ligado à reprodução e, portanto, à preservação da espécie.
Em seu Estudos Sobre a Histeria (2016), publicado ainda em 1893, Freud apresentou a hipótese de que a sexualidade cumpre papel essencial na psicogênese da histeria, sendo assim fonte de traumas psíquicos. Dessa forma, Freud não só fundou uma maneira nova de pensar o fenômeno sexual, como também inaugurou a própria psicanálise. Ele partiu de uma afirmação aparentemente simples: os impulsos oriundos do corpo almejam a satisfação. Com isso, Freud definiu o que é o desejo na Interpretação dos sonhos (1900): o caminho que parte do desprazer e tende ao prazer é o que se denomina por desejo.
Apesar de se distanciar de Freud quando se apega ao sexo como vontade de reproduzir, é impressionante encontrar em um filósofo alemão do século XIX o peso do desejo sexual na vida humana. Ele afirma que a força do amor e da sexualidade são irresistíveis, insiste que no humano: “O instinto parece dirigido por uma intenção individual, embora lhe seja estranha. Toda vez que o indivíduo não compreende os planos da natureza, ou resiste a eles, esta faz surgir o instinto e, por isso, ele existe nos animais inferiores, mal dotados de inteligência. Contudo, o homem só se submete ao instinto no amor” (Schopenhauer, 2010 p. 15). A razão perde a batalha contra a paixão sexual e Schopenhauer cita Terêncio, teatrólogo romano: “O que não é concedido pela razão não deve ser dominado com a razão”.
Enfim, apesar das diferenças, Freud e Schopenhauer aproximam-se quando este afirma que somos dominados por forças que desconhecemos (“gênio da natureza”) e nos iludimos achando que escolhemos conscientemente o que fazemos. O instinto em Schopenhauer, a pulsão em Freud, como estruturantes do sujeito à revelia de sua percepção, consciência ou anuência, é um elemento que justapõe os dois pensadores.
Conclusão
Com base no que foi dito é possível visualizar as semelhanças entre alguns pontos do pensamento de Nietzsche e Schopenhauer com o pensamento Freudiano, ou seja, com a psicanálise. Por um lado, Nietzsche e sua noção de que o homem é o animal mais profundamente doente imbricando com Freud e o abandono da noção de normalidade. De outro, a importância do sexo (e também da sexualidade, vontade, desejo) como fator importante, e até mesmo determinante, na vida dos seres humanos, ideia encontrada em Schopenhauer que se assemelha com a ideia freudiana.
Entre as influências que colaboraram para a construção da teoria psicanalítica encontram-se regularmente citadas, por exemplo, a teoria da evolução de Darwin, o positivismo e o movimento mecanicista, estes últimos tão característicos do século XIX. Até que ponto a ausência de ênfase nas influências de Nietzsche e Schopenhauer para as idéias de Freud refletem realmente uma ausência real, é um fato discutível, indiscutíveis porém são as semelhanças encontradas entre esses pensadores e os conceitos psicanalíticos.
Referências
FREUD, S. (2016). Obras completas vol. 2: Estudos sobre a histeria. São Paulo: Companhia das Letras. (originalmente publicado entre 1983 e 1985)
FREUD, S. (2019). Obras completas vol. 4: A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras. (originalmente publicado em 1900)
FREUD, S. (1996). Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. (originalmente publicado em 1913 – 1914)
MANONNI, O. (1994). Freud: uma biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (originalmente publicado em 1968)
SCHOPENHAUER, A. (2001). O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto.
SCHOPENHAUER, A. (2010). A vontade de amar. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro.
NIETZSCHE, F. (2008). Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das letras.
NIETZSCHE, F. (2005). Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das letras.
NIETZSCHE, F. (1987). Genealogia da moral. São Paulo: Editora Brasiliense.





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